Excelente Artigo publicado pela revista Pais e Filhos.
Quem são os nossos filhos? Ou, dizendo de uma forma mais coloquial, «que bicho é este»?
À medida que o tempo passa e os filhos crescem mudam muito, sobretudo depois dos 9-15 meses de vida. Não ficam melhores nem piores: apenas diferentes. Ou se calhar nem isso: vincam é mais os traços da sua personalidade, do seu temperamento, afirmam a sua identidade, e muito na dimensão do que o ambiente externo (leia-se: pais, família e educadores) permitem. Se, para alguns pais, este facto é inquietante, é bom ter presente que «mais do mesmo» faria da parentalidade uma coisa sem ponta de graça.
Quem são os nossos filhos? Já os conhecem desde antes do nascimento, mesmo que com fases mais esclarecedoras, outras menos. Contudo, talvez valha a pena relembrar algumas coisas sobre eles, e escrever um pouco sobre as bases em que se estruturam. Não temos memórias presentes da maior parte deste período da nossa vida e, contudo, há unanimidade entre os cientistas e profissionais sobre o facto de ser o período mais marcante dela, em termos de estruturação. É uma fase em que se estabelecem os princípios e valores, o sentimento social e a segurança afectiva. É um período em que os neurónios se organizam como nunca mais na nossa vida, e em que o cérebro fisicamente se desenvolve consoante o ambiente, o afecto, as regras e o contexto familiar e social. Parece estranho que não nos lembremos desses primeiros anos – a maior parte das pessoas consegue ir buscar uma ou outra memória de acontecimentos passados cerca dos 4 anos, mas mesmo assim episódicos –, quando eles são tão importantes para nós e explicam personalidades e comportamentos que revelamos no dia-a-dia, tantas vezes sem darmos por isso e tantas vezes, também, pouco compreensíveis ou justificáveis pelos outros. Mas, na realidade, quando vemos uma casa não pensamos nas fundações. Quando vemos um palco de um teatro não pensamos na dimensão dos bastidores. Quando assistimos a um espectáculo ou a um programa de televisão que consideramos perfeito não temos noção das horas e trabalho gastos para que tudo corresse tão bem. Aqui aplica-se a frase de Saint -Exupéry, de que o essencial é invisível aos olhos.
Não quer isto dizer que tudo esteja feito e terminado aos cinco anos. Não. Após a estrutura montada, há que rechear, adornar, preencher. Desenvolver e capacitar. Mas quaisquer livros, por melhor e mais bonitos que sejam, não farão uma boa biblioteca se as estantes forem tortas, frágeis ou incongruentes, se a luz for tosca e o pó cobrir tudo.
Quem é a criança que têm perante vós? Vale a pena rever algumas coisas, mesmo para aqueles pais de crianças que já passaram algumas destas idades. Poderão porventura percebê-la melhor e descobrir porque é que os seus comportamentos têm sido o que são.
TEMPERAMENTO
Tantas vezes ouço, nas consultas, as queixas dos pais e dos familiares: «Será hiperactivo?, Está sempre na Lua. Faz muito barulho a brincar. Chora à mínima coisa. Não pára quieto! Nunca dá beijinhos à avó! E tantas outras coisas mais, como se a criança tivesse cometido um crime ou tivesse um comportamento altamente desviante ou sociopata.
Com menos de seis anos, as crianças não têm ainda uma noção clara dos seguintes parâmetros: massa, área, volume líquido, peso e volume sólido. E sabem a que idade eles adquirirão, em média, estas noções? 7-8 anos para as três primeiras. 9-10 anos para a quarta e 11-12 para a última. Incrível, não é? E isto relativamente ao mundo físico, que é definido e que exploram todos os dias. Que dizer do mundo relacional, bastante mais elástico e imprevisível, do mundo emocional e do mundo psicológico? É por isso que somos sempre meninos em fase de aprender. Todos os dias nos podemos surpreender a nós próprios com descobertas de sentimentos e factos, mas aos 1, 2, 3, 4 ou 5 anos, ainda são muito, mas mesmo muito, pequeninos, e o entendimento deles do mundo, pessoas e coisas não é o mesmo do dos adultos.
É necessário compreendermos quem são os nossos filhos e como se comportam face ao mundo, às pessoas e relativamente aos seus próprios sentimentos. É errado pensar que os podemos mudar ou que têm de ser como nós desejávamos, muitas vezes até ao sabor dos momentos e com expectativas incoerentes: o mesmo menino que estimulamos a correr, quando dá jeito mostrar aos amigos a sua desenvoltura, é o que é admoestado se está a brincar de um modo mais agitado. Poderemos influenciar os comportamentos, de forma até decisiva, mas mudar a pessoa é tarefa inglória e inútil. E também indesejável.
Quem tem de adaptar a sua estratégia são os pais, primeiro, para que possam entender os filhos e dar-lhes as guias necessárias para adequar atitudes e comportamentos às necessidades numa perspectiva do que será melhor para eles e também para os outros elementos da sociedade.
A comparação com familiares ou amigos, por exemplo, é comum mas contraproducente. «O teu primo não fazia nada disto. O João da tua aula nunca faz birras quando vai ao restaurante!» Só serve para olhar os outros com desconfiança e pensar que estão do lado do adversário. Mas afinal o que é o temperamento? É um conjunto de características inatas que servem para as pessoas se organizarem face ao mundo exterior e interior. É, pois, um instrumento fundamental na vida relacional, com os outros e connosco próprios, e não muda ao longo da vida, podendo contudo desenvolver-se e exercitarem-se alternativas comportamentais, graças à enorme capacidade de reflexão e autodomínio que o ser humano tem.
MATRIZ GENÉTICA
É velha a frase «parece que já nascem ensinados». E não é mentira, porque será uma ilusão pensar que uma criança nasce sem nada na cabeça. Desde cedo, as crianças começam a evidenciar comportamentos e características da personalidade que não foram ensinados nem tiveram ocasião de presenciar, mas é sobretudo depois do ano de vida que, gradualmente, a exibição dos traços da personalidade e do temperamento se vai fazendo. O tigre desperta e tanto pode sair um gato mansarrão como uma fera que ruge e assusta.
O mundo mudou – a frase é um lugar comum. Tem sempre mudado, acrescentarei, mesmo que a evolução da tecnologia e da comunicação tenha acelerado a mudança, criando ritmos rápidos que ultrapassam em muito os limites físicos. Contudo, genética e biologicamente continuamos a ser animais, da classe dos mamíferos, e muito pouco diferentes do que éramos há milhões de anos. Continuamos a partilhar mais de 97 por cento dos genes com os chimpanzés, e 75 por cento com a nojenta mosca-do-vinagre. Não fosse o cérebro que temos e já estaríamos provavelmente extintos, dado que o nosso corpo não é suficientemente forte para enfrentar as condições adversas da natureza ou os outros animais.
O cérebro deu-nos a adaptabilidade e a capacidade de desenvolver estratégias para nos defendermos do perigo e de produzir sociedade, ao contrário dos outros animais.
Conscientes da nossa vulnerabilidade individual não podemos descurar uma coisa sagrada: a segurança. Não apenas física mas também da aprendizagem relacional com os adultos, o mundo e os objectos – é por isso que as crianças experimentam as coisas, com os seus cinco sentidos, correndo risco de sofrer um acidente, mas vão aprendendo com o tempo a defender-se. Um bebé de ano e meio, dois anos, levará à boca mais facilmente comprimidos que encontra na mesa-de-cabeceira dos pais do que uma criança de quatro ou cinco anos. Ou cairá de uma cadeira mais vezes. Também precisamos de segurança psicológica e emocional. Ninguém vive sem afecto, sem se sentir amado e desejado. Não é por acaso que querido vem do verbo querer, e a sensação de se ser útil é pão para a alma. Mesmo que, em grupo, nos sintamos mais fortes – é por isso que o nosso filho de três anos, aparentemente tímido, quando está com os primos parece que se solta e pula por todos os lados – individualmente temos receios e sentido da fragilidade da condição humana.
A necessidade de se sentir parte do todo e profundamente amado determina, neste grupo etário, grande parte dos comportamentos – o medo do abandono é o grande papão de qualquer criança, sobretudo a partir do ano e meio. Por outro lado, as crianças sentem-se motivadas para aprender e desejam que o seu esforço e as suas realizações as identifiquem, gostando por essa razão que as elogiem e recompensem. As lembrem e recordem. Como muitas vezes as condições do dia-a-dia não ajudam a que se tenha tempo, disponibilidade e até paciência, há que, por via das dúvidas, accionar o dispositivo genético de defesa, e mesmo com todas as incertezas e ansiedades sabem que mais vale mandar do que ser mandado, mais vale desconfiar do que dar de barato. E a memória de tantas gerações que desenvolveram outras tantas estratégias vencedoras está em cada gene dos vossos filhos.
SANTA INGENUIDADE
Não deixa de ser engraçado ouvir jovens pais ou menos jovens avós questionarem-se acerca destes nicos de gente: «Ele é tão pequenino para ter manhas!» As manhas são, afinal, o corolário da arte básica da sobrevivência, nas suas diversas nuances: persuasão, manipulação, sedução, imposição, exigência, solicitação. Maneiras dife-rentes de atingir os mesmos objectivos: mandar, ter poder, servir-se dos outros para os nossos desígnios e vontades, numa palavra, sobreviver… seja fisica-mente, seja afectiva, psicológica ou socialmente.
Na maioria das crianças, a personalidade faz-se segundo uma escada de patamares. A criança absorve a informação, processa-a, analisa-a, decide o que altera no seu estado anterior e dá então um passo para o degrau acima, onde receberá mais informação e o processo se repete. Há assim períodos críticos, que teremos de descobrir em cada criança – uns para dar informação, outros para deixar repousar e processar essa informação. É nesses períodos críticos que aparecem sentimentos e comportamentos contraditórios: a necessidade de expansão, de ampliação das capacidades e dos conhecimentos, que tanto estimula e puxa pela criança, também causa angústia e ansiedade.
COMO DOMINAR ALGUÉM?
Há meios coercivos e meios persuasivos de o fazer. E as crianças experimentam ora uns ora outros, tentando entender qual das vias é mais eficiente. A mais fácil é a negativa, porque exige menos energia e sentido estratégico, e é mais imediata. Quero, posso e mando. Birras e pressão. Choro e vitimização. Tirania e terrorismo emocional. A via positiva aparece mais tarde, não apenas porque a negativa não deu (espera-se!) frutos, mas porque a capacidade de teatralização e de manipulação só aparece quando o pensamento evolui, embora mesmo os bebés pequenos já evidenciem manobras deste tipo, baseadas na sedução e no charme. Qual dos leitores consegue resistir a um sorriso, uma carinha, um «ó, pai querido»? Acho que nenhum e francamente, quase que desejo que nenhum... pelo menos se o objectivo da manipulação não for algo de inaceitável. Como há que ensinar as crianças a optarem por caminhos positivos, rejeitando os outros, não se podem reprimir todos estes caminhos. Estudemos pois os nossos filhos desde que nascem e em vez de os tentar refazer e mudar, talvez o desafio seja muito mais aliciante se pensarmos em como, sendo quem são e com a nossa ajuda, poderão ser felizes e fazer os outros felizes.
nem bom nem mau
O temperamento (e a personalidade) não são bons ou maus. Apenas são. E o resultado em termos de adequação e ética sê-lo-á conforme o caminho que seguir e a intensidade que tiver. Ser tímido à partida, pode transformar-se numa qualidade ou num defeito: se a timidez for tanta que inibe ou paralisa, prejudicando a criança, ou se se converter em prudência, que muito a ajudará a analisar as situações e as pessoas, sem a manietar. O mesmo se dirá da ousadia.
Dez traços comportamentais
Pode resumir-se o temperamento a uma composição de dez itens, sendo que estes parâmetros são observados desde o primeiro dia de vida. É face a eles que temos de pensar os nossos filhos:
* nível de actividade – há crianças mais ou menos agitadas, que preferem actividades mais cinéticas ou mais quietas. Este traço pode explicar a apetência e escolha de profissões, desportos, actividades artísticas, etc.
* distractibilidade – grau de concentração e de atenção à actividade que está a desempenhar, bem como a influência dos estímulos externos sobre a reflexão, o comportamento e as actividades. Pode ser bom, se for para distrair a criança de qualquer coisa que quer, mas pode ser mau se se tratar de fazer os trabalhos de casa.
* intensidade – refere-se ao grau de energia que a criança põe nas suas respostas. Mais dramatismo ou menos. Mais veemência ou menos. Mais perturbação ou menos. Grita ou fica calada. Esperneia ou permanece quieta quando contrariada. Uma criança intensa vive a vida com mais paixões, mas porventura com mais desilusões. Uma criança menos intensa poupa -se a grandes trambolhões, mas se calhar é capaz de não ter momentos exaltantes;
* regularidade – em aspectos como o apetite, o sono, as horas de fazer cocó, cansaço, etc. A não compreensão do grau de elasticidade da criança aos horários e suas variações pode causar situações de birra ou desajustamento;
* limiar sensorial – tem a ver com a reacção da criança aos estímulos (sons, paladares, cheiros, mudanças de temperatura, toque, luzes). Há crianças a quem a luz do sol incomoda, ou que se excitam ou têm medo perante determinados sons, que entram numa sala e dão pelo cheiro a canos ou a comida, etc. Existe provavelmente uma relação com a criatividade e o sentido artístico;
* timidez/ousadia – perante estranhos ou novas situações, ou desafios como crescer nas diversas áreas do desenvolvimento;
* adaptabilidade – que se relaciona com a capacidade de se adaptar a mudanças (de casa, escola, familiares, estação do ano, dias de chuva ou de sol, viagens, ou até mudança de actividade). Uma criança com baixa adaptabilidade pode sofrer se as outras, por exemplo no jardim de infância, a obrigam a entrar em cenas para a qual ainda não está preparada;
* persistência – tempo que a criança continua a dedicar a uma determinada actividade quando surgem dificuldades ou obstáculos. Desiste? Persiste? E quanto tempo aguenta à espera, depois de pedir um copo de água e da mãe dizer que «já vai»? A persistência exagerada pode degenerar em teimosia. A falta dela pode originar um desistente;
* humor – tendência para reagir de forma mais pessimista ou optimista (podem experimentar, pedindo a opinião do vosso filho para saber se um copo está meio cheio ou meio vazio), sentido da graça e do riso ou, pelo contrário, difícil de obter um sorriso e sempre sorumbático;
* reactividade – perante uma dada situação, de contrariedade ou agradável, manifesta-se primeiro e pensa depois, ou analisa primeiro e reage depois?
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