domingo, 16 de maio de 2010

O Sono

A Hora do Sono

Dormir é algo que se pode ensinar, defendem os especialistas. Dá trabalho aos pais, desespera qualquer um, mas o resultado compensa. Os miúdos que dormem bem crescem mais saudáveis. São alunos mais atentos e, segundo estudos científicos recentes, mais bem-comportados e até menos obesos


O André não era muito diferente da maioria dos recém-nascidos: não gostava de dormir de noite, tinha cólicas e fome fora de horas e chorava muito. Mas demorou apenas três meses a adaptar-se e nem sequer se pode dizer que tenha sido um bebé difícil. Só nunca gostou muito de dormir. Cresceu e deixou de fazer a sesta cedo, tinha medo do escuro, pedia que ficassem com ele até adormecer e, de vez em quando, acordava e chamava ou acendia a luz.
«Até aos quatro anos, dormia a noite inteira. Depois, começou a acordar. Acendia a luz e voltava a adormecer, só vinha ter connosco se tinha um pesadelo», conta a mãe, Maria J. Os pais contavam-lhe uma história ou deixavam-lhe uma luz de presença e procuravam não valorizar a situação. Foi com a entrada para a escola que a preocupação aumentou. «A situação agravou-se. Começou a acordar mais vezes e a ter problemas de concentração», explica Maria J. O André não conseguia estar quieto ou terminar uma tarefa. Os médicos e um psicólogo asseguravam que não era hiperactivo, não tinha dificuldades de aprendizagem, via bem e apenas lhe descobriram um ligeiro problema de audição – tudo o resto ficava por explicar. «Não sabíamos bem a quem recorrer», confessa a mãe.

Maria J. descobriu num artigo de jornal o nome da neurologista especialista em questões do sono Teresa Paiva e decidiu-se a procurá-la. André, que tem já 12 anos, é agora seguido na Consulta do Sono do CADIN – Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil. Não tem problemas físicos – a hipótese foi afastada depois de alguns exames e da monitorização de uma noite de sono – e tem vindo a somar avanços desde que iniciou a psicoterapia.

«Melhorou muito a autoconfiança, já não evita a hora do deitar nem pede para ficarmos com ele e encontramos a luz do quarto acesa muito menos vezes», conta a mãe. Como resultado, a concentração melhorou e o comportamento também.

Dos zero em diante

A par com a psicoterapia, André iniciou um processo de mudança de hábitos. Já antes não via televisão antes de dormir e só jogava computador ao fim-de-semana. Agora, reduziu a luz no quarto ao mínimo, deixou de estudar ao serão e come menos à noite. «Ele jantava muito bem e isso era uma das coisas que podia estar a contribuir para os pesadelos», explica a mãe. Além da parte psicológica, O André trabalhou «a higiene do sono».

Os problemas de sono mostram-se muitas vezes logo nas primeiras semanas de vida. A maioria dos bebés «apresenta um padrão fetal de sono, com maiores tempos de vigília e de movimento no final do dia e início da noite», explica o pediatra Armando Fernandes. Mas é possível contrariar essa tendência. Como? «Estimulando o bebé durante o dia, quando está acordado (com luz, fala, sons, mexendo-lhe, etc...) de forma a dormir o mínimo de horas possível – e, pelo contrário, promovendo o silêncio absoluto e a escuridão completa durante a noite».

Carla Ribeiro, mãe da Margarida, de cinco anos, e do João e do Gonçalo, gémeos de 18 meses, habituou os três filhos a adormecerem sozinhos desde muito cedo. A menos que adormecessem a mamar, deitava-os sempre ainda de olhos abertos ou mais ou menos embalados. «Custa imenso. Sabe muito bem ter um bebé recém-nascido ao colo e pô-lo no berço é como estar a cortar um laço, mas é também dar-lhes autonomia», explica.
A norma deve ser deitar o bebé ainda acordado, concordam os especialistas. Sempre na sua cama – para evitar o chamado «sono fraccionado» que pode resultar do facto de acordarem num cenário diferente – e, a partir dos nove meses, no seu quarto. «Outrora recomendava-se a mudança entre os quatro e os seis meses (após o meio ano, a criança já não precisa de comer a meio da noite). Actualmente, alguns estudos revelaram que o lactentes que dormem no quarto dos pais até aos nove meses apresentam menor risco de síndroma de morte súbita», esclarece Armando Fernandes.

Os três irmãos dormem já no mesmo quarto e Carla teve que abdicar de algumas «boas práticas. Quando a Margarida chorava, acalmava-a sem a tirar da cama. Agora, se um chora, vou logo buscá-lo para não acordar os outros», explica, entre risos. Mas todos se deitam à mesma hora e Margarida continua a cumprir o ritual de deitar-se sozinha e ficar à espera do beijo e do aconchego dos pais, que saem antes de ela fechar os olhos. «Às vezes acende a luz. Sabe que pode “ler” um livro, se não conseguir dormir logo. Só não pode brincar nem jogar», explica a mãe.

Rotinas e rituais

Criar rotinas é indispensável para estabelecer padrões de sono saudáveis. É importante manter a hora de deitar e levantar e os especialistas aconselham rituais a anunciar o descanso da noite. Banho, vestir o pijama, lavar os dentes, contar uma história... a ordem deve manter-se e a última actividade deve acontecer já no quarto da criança. «A divisão não pode ser só o sítio de dormir ou estar de castigo», lembra a psicóloga Mafalda Leitão, que faz parte da equipa da Consulta do Sono do CADIN.
«O que sugiro aos pais é que incluam na rotina, após o jantar e da higiene, uns vinte ou 30 minutos com os filhos no quarto, fazerem uma brincadeira calma, cantarem uma música, contarem uma história, etc... », diz a especialista. Mas os rituais nunca devem ser suspensos como punição, diz Armando Fernandes. «Mesmo que tenha posto o seu filho de castigo, não o deixe adormecer com a noção que está zangado com ele», lembra aos pais. Ter uma fralda ou um boneco por companhia também é uma boa estratégia: o objecto está lá ao adormecer e ao acordar, e isso dá segurança aos mais novos.

Pesadelos, doenças... e dormir na cama dos pais

Quando um bebé chora durante a noite «não acenda a luz, não lhe pegue ao colo, murmure alguma coisa, acaricie-a e, se for o caso, troque a fralda e saia», recomenda Armando Fernandes. O choro poderá aumentar, mas o especialista aconselha a esperar cinco minutos para voltar a entrar no quarto, depois dez e por aí em diante, habituando-a a ficar sozinha. «Lembre-se que o choro prolongado, meia hora ou mais, não fará mal ao bebé, nem física nem psicologicamente», diz.

A opinião do especialista vai de encontro ao método defendido pelo pediatra e neurofisiólogo Eduard Estivill, muito apreciado por uns e criticado por outros pela extrema rigidez de procedimentos que defende . As ideias do especialista são polémicas entre alguns pais e mesmo entre alguns pediatras como o compatriota Carlos Gonzalez, que encara com naturalidade a possibilidade de a criança dormir com os pais (cosleeping). Investigador na área do sono, Estivill diz que 35 por cento das crianças tem dificuldades em dormir, mas lembra que só um por cento sofre de alguma patologia – as outras só precisam de ser ensinadas. E para conseguir dormir bem, segundo o especialista, é preciso aprender a adormecer sozinho, o que implica alguma disciplina da parte dos pais e nervos de aço para conseguir cumprir os tempos de choro aconselhados antes de voltar a entrar no quarto do filho. O medo do escuro a exigir uma luz de presença surge entre os dois e os cinco anos, idade em que podem ocorrer terrores nocturnos ou pesadelos. Os primeiros acontecem uma a quatro horas depois de adormecer. A criança nunca chega a acordar, mesmo quando se senta na cama, fala ou gesticula, e abraçá-la e sossegá-la é a melhor forma de lidar com o pânico – ela não se vai recordar de nada no dia seguinte. Os pesadelos, que acontecem já na segunda metade da noite (sono REM), colocam aos pais um desafio maior. A criança acorda e relata um sonho mau – lembra-se do pesadelo – e não raras vezes procura a cama dos pais.

Deixar a criança dormir no quarto dos progenitores é uma opção, que apesar de ser defendida por algumas correntes, continua a ser apontada aos pais e considerada pela maioria um «mau hábito». Os pesadelos ou uma doença abrem a porta e nem sempre é fácil voltar atrás. Até porque muitas vezes é a única solução. «Entre o querer comer e o acordar por acordar, a Alice acordava três a quatro vezes durante a noite. Passou a dormir na nossa cama, porque era a única forma de acalmar e nós tínhamos que trabalhar no dia seguinte....», confessa Rosa Paiva.

Mãe de uma bebé a quem foi diagnosticada doença celíaca aos nove meses, desdramatiza a situação. «Toda a gente tem uma opinião sobre o bebé “tão crescidinho” que ainda dorme com os pais, principalmente os amigos sem filhos (risos) .... Mas o pediatra sempre disse confiar no nosso bom-senso», desdramatiza. A filha mais nova, Marta, tem o sono tranquilo e dorme na cama dela. Alice saiu do quarto aos três anos «à boleia» de uma mudança de casa que possibilitou a mentalização entusiástica de saída para «o quarto novo». E o que é certo é que funcionou bem, o que cimenta a ideia de quem defende de que por mais rígido que se pretenda ser há sempre que ter em conta a família concreta, as crianças em apreço e o que funciona e mantém feliz uns não é igual ao da casa do lado.

«Muitos pais chegam à consulta muito envergonhados (por não conseguirem lidar com a situação e deixarem os filhos dormir na cama deles), cheios de olheiras e a sentirem-se completamente impotentes», conta Mafalda Leitão. As crianças hiperactivas sofrem com frequência de apneia do sono e há outros distúrbios de resolução complicada. «É fundamental fazer com que eles durmam bem de noite. Se numa primeira fase isso implicar a criança dormir com os pais, seja. E então depois, de uma forma gradual, trabalha-se a mudança. É possível, alterando pequenas coisas, fazendo pequenos ajustes na rotina da família, tornar o momento de deitar mais calmante e relaxante para todos», diz a psicóloga.

Yoga para dormir

No último ano, o mau dormir da Mafalda, que tem sete anos, tem vindo a dar lugar a um sono tranquilo. Já não tem medo do escuro, levanta-se e vai sozinha acender a luz, adormece sozinha e não acorda de madrugada. Foi sempre uma criança ansiosa, fechada, avessa a novos desafios, explica a mãe, Vanda Cardigos. A prática do yoga tornou-a mais calma e extrovertida. «O yoga proporciona um maior bem estar geral à criança, um melhor convívio consigo, especialmente nos momentos de mudança», explica Rosa Xufre, professora de yoga para crianças. «A criança que pratica yoga aceita melhor o silêncio, o encontro com a noite e com o momento em que deixa o quotidiano familiar para entrar no mundo do sono e do sonho, tão fundamentais a um crescimento pleno e saudável».

O que diz a Ciência

Crianças que dormem mal correm maior risco de obesidade Em 2006, investigadores de Bristol (Reino Unido) relacionaram a privação do sono com alterações de metabolismo que fazem aumentar o risco diabetes, doenças cardiovasculares e também a obesidade. Mais recentemente, um estudo da escola de Medicina de Harvard mostrou que os bebés que dormem menos de 12 horas são mais gordos na idade do pré-escolar. O pediatra Armando Fernandes constata essa realidade na prática clínica. Diz que o cansaço leva à falta de exercício e aponta responsabilidades a alguns factores hormonais. «É na fase NREM que ocorre o pico de produção da hormona do crescimento, aproximadamente meia hora pós uma pessoa dormir. Esta hormona ajuda a manter o tónus muscular, evita a acumulação de gordura, melhora o desempenho físico e combate a osteoporose. Quando dormimos pouco ou mal, a produção da hormona do crescimento é interrompida, sendo que a proporção de gordura no corpo aumenta face à proporção de músculo», explica. Além disso, acrescenta: «um sono inadequado também conduz à diminuição da leptina, hormona que regula o metabolismo dos hidratos de carbono». Baixos níveis de leptina levam o corpo a «pedir» continuamente hidratos de carbono. «Ao risco de obesidade junta-se então o risco de diabetes».

Dormir bem melhora o desempenho escolar As crianças que dormem menos de dez horas por noite na primeira infância têm mais probabilidade de terem problemas cognitivos e de comportamento quando entram para a escola, mesmo que normalizem os seus padrões de sono, concluiu um estudo canadiano. Na adolescência, segundo investigadores da Universidade de Pittsburgh, nos EUA, os miúdos que dormem um sono profundo e sem interrupções tiram melhores notas nos testes, em áreas exactas como a Matemática.

A Perturbação da Hiperactividade ou Défice de Atenção (PHDA) é mais comum entre os miúdos que dormem mal A média foi calculada por cientistas da Universidade de Helsínquia, na Finlândia, em Abril de 2008. Os miúdos em idade escolar que dormem menos de 7,7 horas têm maiores níveis de PHDA, maior impulsividade e pior comportamento. A agitação resultante da falta de sono é muitas vezes confundida com os sintomas de hiperactividade, alertam os especialistas.

Fonte: http://www.paisefilhos.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=2393:hora-do-sono&catid=39:manchete

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